quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Efeito Sol (ido)

Era o sol que carregava os meus mundos. Mirlla não poderia entender, pois para ela o mundo era o mundo, um animal morto não seria mais do que um animal morto, ela não acreditava na cadeia da evolução. E Vicente então, não poderia ser mais do que a lua, minguando para o escuro. Sim, ele tinha um sorriso borococho e minguado, celebrado apenas nos céus tempestuosos e dentro de seu próprio carma. Como um menino cheio de vertigens, cruzei o oceano mental e simbólico. Me permitindo se perder eu disse:
- Serão belos os dias sem o sol. Eu sou a fotossíntese, eu sou a celebração. Amanhã irei acordar disposto, só preciso recuperar os arroxeados dos meus olhos.
Assim eu dormi, acabando com minhas insônias. Por que celebrar apenas a lua, se em conjunção com o sol, até os mares subconscientes eram afetados? Gostava de dormir nas noites de tempestades mentais severas.
Era o sol que acordava o meu mundo. Mirlla vinha com todo seu entusiasmo de bosta, abrindo as cortinas para mim descortinar dentro de nada. Eu abria meus olhos trazendo toda a matéria que até então era inconsciente, e pisava forte nas tábuas de madeira do chão. Ela sabia que eu tinha chorado até tarde, porque um homem pode tentar esconder sua idade mas não seus castigos emocionais temporários.
- Você precisa comer alguma coisa! Como é que vai ficar deste jeito aluado?
- Mirlla, eu não quero nada que seja sólido. O que eu quero é apenas ter um sol dentro do peito para chamar de meu!
Não é que minha ida ao banheiro fosse complexa quanto o hábito imundo de classificar as coisas, mas estava menos denso do que a água em sua forma líquida caindo da torneira, e minha cabeça rodava entre uma lajota sim e outra lajota não, com as cores ordenadas entre azul e amarelo. Passei creme dental na minha boca, esperando ter um sorriso mais branco. A passagem dos segundos era fina como o vapor. Para quê um pijama listrado escuro? A minha densidade estava vaporizada. Baixei a tampa do vaso e dei a descarga, levando um punhado de xixi transparente, estava bem de saúde segundo critérios médicos.
- Ele vem? – eu perguntei, pisando novamente nas tábuas, levantando poeira das frestas que eu nunca limpava.
- Sim, logo deve estar chegando. Não coloque uma visão sobre toda esta coisa! Ele nunca irá te amar, já deixou bem claro. Não é apenas de um, é de todos!
- Bem claro quando?
- Quando foi e não voltou – falou Mirlla, virando as costas para minha existência tardia.
- E se eu quiser ser todos?
- Mesmo assim ele não irá lhe querer, vê se entende – saiu do quarto, me deixando no claro querendo voltar e fechar as cortinas. Se ele vem então ele voltou, acabei pensando. Mas, o sol ia morrendo um pouco todos os dias.
Se ele vinha eu deveria estar em ordem, pois colocaria tudo na sequência que sempre planejei. Não me atrevi a esquecer de passar o lápis escuro sobre meus olhos, e nem deixei de rebocar minha ressaca de insônia molhada, com uma base neutra sobre o rosto. Usava a bege, número dois.
Lá fora era o lugar do meu espetáculo. Quando eu abria a porta dos fundos e dava de cara para minha horta de legumes frescos, pressentia sobre meu corpo um calafrio que vinha de terras desconhecidas. Estendia sobre a grama o meu papel físico, tentando clarear minha pele com o sol que era barrado por um milhão e meio de folhas da minha árvore preferida (aquela fabricada com flores como efeito de decoração).
Na rajada de vento que vinha do vizinho, sentia seu cheiro pelas redondezas. Era aquele perfume enjoado, de mau gosto, que tanto amei nas minhas páginas de um outro capítulo. Estavam preocupados com minha recente necessidade de tentar tomar comprimidos a mais para dormir. Era por isso que ele vinha até mim?
- Cadê o seu sol? – pedi para meu canteiro de flores, como se pedisse para uma versão mais fixa, esverdeada e cheirosa de Vicente.
Como um canteiro, nada me respondeu e acabei falecendo sobre um mar de objetos delineados, como numa animação que sempre assistia na televisão da minha infância.
- Ele chegou. Posso pedir que ele venha aqui ou o encontrará na sala? – Não havia reparado na súbita presença de Mirlla, que me observava da janela da cozinha com todos os seus silêncios comedidos.
- Quero ir para o sol. Aqui atrás não me escondo de Deus. Aqui fora ele não me engana com nada – disse para Mirlla, que se tornava cada vez mais um borrão escuro e menos um personagem.
Não bastava o vapor dos segundos, eu via subir um vapor quente do chão. A terra toda era feita de segundos perdidos para o espaço atemporal. Meus olhos não sabiam porque as rosas do meu jardim tinham tantos espinhos. Sabe-se lá porque queria Vicente tão perto. Eu poderia me sujeitar a ser todo mundo, estava aprendendo a me transformar na não matéria. Caminhei até a beira da piscina e o esperei, com minha cabeça ardida pelo calor que vem do céu.
- Você está bem? Não diga que tentou se matar por minha causa?
- Não se dê tanta importância e mérito – nunca mais olharia para os olhos dele.
- Está indo as suas consultas? – ele perguntava e eu apenas sentia a sensação de estar com um sol despedaçado – E como foi? – Continuava me questionando, esperando que confirmasse o que todo mundo já esperava saber. Eu acenei positivamente a cabeça, porque sempre soube que o silêncio machucava muito mais do que um coração partido. E deitei com as costas para baixo, escondendo meu rosto cheio de marcas, para não vomitar sobre o que ele representava quanto homem. Eu deveria responder, por ter empatia, então disse:
- O que te importa? Para alguém que não quer saber de mim, que diz que não me ama, você quer saber muito sobre minha vida... Vive tentando mostrar e justificar o injustificável...
Ele virou a cara, disse que eu vociferava palavras e agressões, e tentava argumentar de uma forma precária. Assim foi embora me deixando com um punhado de flores amargas, que precisavam ser cortadas até pela raiz. Aquela piscina estava funda o suficiente para mim mergulhar sem volta?
A presença de Mirlla era incômoda. Já havia a destruído de inúmeras formas. Era como se ela não pudesse ir e ficasse cada vez mais sobre meus pés, com aquela roupa florida ridícula, fazendo um papel de guarda-costas do diabo. Gritava frequentemente um “vai para o inferno”, sabendo que era eu que gostaria de estar por lá. Ela veio depois de horas com seus sucos coloridos e um punhado daqueles remédios que me obrigavam a tomar por ser um ser humano suicida. Eu ainda podia me cortar com minhas próprias unhas se quisesse, mas ela ficava lá parada com seus andares de altura.
- Você não pode simplesmente estacionar o seu carro em uma vaga para pessoas com complexo de Peter Pan – odiava o senso de ironia elaborado daquela bruxa. Parei e respirei, e educadamente sorrindo disse:
- Foda-se!
Ela me olhou assustada, virando para o meu lado de cara fechada. Como quem conspira contra meus poucos minutos de felicidade, tive que ouvir um:
- Deveria ter dito isso para o Vicente, não para qualquer um que queira apenas lhe ajudar – seus olhos enchiam constantemente de chuvas.
Respirei novamente e respondi sem cogitar:
- Desce do carro! Me deixa capotar no meu próprio universo – Ela não mexeu nenhum músculo, me deixando cada vez mais irritado com o sol naquela tarde estúpida de um domingo de lugar nenhum.
- Para com isto! Só você que não percebeu que não tem fundamento? Só você não percebeu que isso é chato, injustificável, que essa vingança não leva você a nada? O que você ganha, me diga? Vai, não fica parado aí com esta cara de trouxa, abra a boca e me fale... Você acha que isso tudo ainda tem sentido?
Não conseguia olhar para Mirlla. Ficava de cabeça baixa vendo o mundo que construí desabar. Não tinha o que discutir, aquilo tudo não era eu, mas meu ego que falava alto. Machucar alguém estava me machucando, e doía tanto saber que aquilo não era eu. Eu queria que doesse nele, queria que ele sentisse tudo na pele. Mas e se fosse na minha pele? E se doesse dentro de mim? O que estava fazendo? Eu não conseguia ser aquilo tudo que eu não era. Não tinha nada de especial em mim, quem não teria vergonha do que eu representava?
- Eu não teria vergonha – disse para mim mesmo, deixando Mirlla sem entender.
Acabei sorrindo, um daqueles sorrisos que a gente dá quando não tem mais nada a perder, quando até os dentes estão molhados com água salgada que sai da alma e brota dos olhos, criando rios de sentimentos líquidos. Eu tinha o sol, e talvez o sol que vinha de mim poderia quebrar um ciclo. Me recuperei e dei as costas, deixando Mirlla para trás falando sozinha. Vicente? Colori na lembrança, ele não precisava de mim como eu não precisava dele, não éramos da mesma cadeia alimentar. Sim, olhando para o mundo eu percebi: não precisava ferir se estava ferido, não precisava fazer sangrar quem gostava de me ver sangrando. Este foi o dia que eu, poeticamente sumi. E sumindo eu fui capaz de entender que o sol não vai embora, tantos séculos que ele brilha sem nenhum motivo. O sol não vai embora porque não tem para onde ir. Não existe dentro ou fora. Existe uma coisa só, e essa coisa não sou eu, o "eu poético". Então sai do eu e vai para o mundo. Eu sei que doeu, mas sai do eu.
Indo pela porta da frente calmamente, eu vi a rua e me virei para o sol, passei as mãos sobre meus cabelos e pensei: sim, eu sou foda para caralho! E ponto. Daquele dia em diante não aceitava mais ser estuprado por palavras, sentimentos e ações. Eu era mais do que um corpo disposto ao sol. Sol demais machucava os olhos e não fazia bem para a minha saúde. Eu não era mais gasoso, estava sólido novamente.

By: Vinicius Osterer, Fevereiro de 2018 - Livro: Estupro Coletivo

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Gemini

Não fiquei preso na barreira dos seus olhos escuros. Já estava preso há algum tempo dentro de um universo não beijado, que não era poesia e nem mesmo qualquer uma das tantas porcarias que já senti quando enchi uma folha de caderno ou um livro.
Tenho a vontade de gritar milhares de vezes as palavras porra e caralho, porque não é estar preso na barreira dos seus olhos, mas transpassar e me sentir livre, no suspense todo onde não habitam mais as palavras. Neste maldito silêncio...
Não vou falar com metáforas sobre o peso do silêncio, de quando volto comigo mesmo para casa, cheio de sua ausência. Talvez seja uma maneira de entender com mais clareza a sua metáfora, onde depois eu disse:  
- Não corte a árvore. O erro não é dela. O erro é do mundo que exige que ela dê frutos em todas as estações...
E esse tem sido um problema. Querer todas as folhas, frutos, flores e ramificações da sua presença todo segundo, quando seu queixo está sobre meu pescoço com seu rosto rosado, perdendo a noção do que é o tempo lá de fora. É difícil escrever para uma pessoa real e não idealizada.
Sim é sobre ti. Sobre ti quando o peito dispara, e eu fico calado como um imbecil que sou. Quando a ausência das palavras chega e fico olhando pela lateral, seu sorriso expressivo como uma placa luminosa cheia de sol. Sobre ti e o seu lindo jeito de calar a minha boca, com palavras imprevisíveis que me deixam extasiado...
Querer se molhar com a doçura de seus gestos e pegar uma gripe, não é castigo. Querer sentir tudo que nunca havia e nem pensei ter sentido, quando vejo sua presença tão sólida para meu material inflamável, passou a ser o meu abrigo. Seria cedo para dizer qualquer coisa?
Te colocar acima não é loucura, é um resultado. Não um resultado qualquer, de uma operação matemática. Contigo eu paro no tempo. Contigo nada mais me importa. Estou errado? Castor e Pollux....
É toda a sua maneira de encarar a vida, que não é pouca. A vida toda que tem a sua altura exata, nem mais e nem menos. O jeito todo de quando sinto que posso fazer acrobacias na minha cabeça, quando falo “como você está se sentindo?” e você responde “Eu não sei”. Não saber é um paraíso. Eu repouso em ti quando adormeço descalço.
Poder morder os seus lábios que me calam, quando perco a razão em demasia, quando sei que não caibo dentro de nada. Você bem mais universo, talvez infinito e tantos. Eu apenas um verso simbólico e rascunhado. É permitido não tirar a imagem dos seus olhos da minha cabeça? Pois eu não desejo.
Você é um acerto. Uma questão descritiva sobre quem quero ao meu lado. Feita sem uma didática estabelecida, sem o rigor pragmático de uma metodologia clássica. Sim é sobre ti. Sobre a falta das minhas palavras. Das minhas justificativas tardias, confundidas com um cavalheirismo doentio. Do que adianta ter em mim todas as cores e as flores, se este sentimento repousa quieto e calmo?
Me afaste com um mar de tempestades, que mesmo assim lhe enfrentarei com minha jangada de cordas e galhos. Poderei dizer:
- Eu vi ele na primeira vez que colocou um sapato. Estava lindo, mas transpassei o seu olhar e me senti livre. Tão livre que o beijei me desmoronando, jogando minha existência para tudo que é dele.
Não corte a árvore, ela me faz chegar perto do céu. Seria cedo para dizer qualquer coisa? Não corte a árvore. Se não for para dar frutos, dê flores e um significado. Estou criando um dicionário inteiro para ti. Nele consta apenas o seu nome, e dentro dele tudo o que eu já aprendi e senti contigo.

Dia 08 de Fevereiro de 2018, Vinicius Osterer.