Era o sol
que carregava os meus mundos. Mirlla não poderia entender, pois para ela o
mundo era o mundo, um animal morto não seria mais do que um animal morto, ela
não acreditava na cadeia da evolução. E Vicente então, não poderia ser mais do
que a lua, minguando para o escuro. Sim, ele tinha um sorriso borococho e
minguado, celebrado apenas nos céus tempestuosos e dentro de seu próprio carma.
Como um menino cheio de vertigens, cruzei o oceano mental e simbólico. Me
permitindo se perder eu disse:
- Serão
belos os dias sem o sol. Eu sou a fotossíntese, eu sou a celebração. Amanhã
irei acordar disposto, só preciso recuperar os arroxeados dos meus olhos.
Assim eu
dormi, acabando com minhas insônias. Por que celebrar apenas a lua, se em
conjunção com o sol, até os mares subconscientes eram afetados? Gostava de
dormir nas noites de tempestades mentais severas.
Era o sol
que acordava o meu mundo. Mirlla vinha com todo seu entusiasmo de bosta,
abrindo as cortinas para mim descortinar dentro de nada. Eu abria meus olhos
trazendo toda a matéria que até então era inconsciente, e pisava forte nas
tábuas de madeira do chão. Ela sabia que eu tinha chorado até tarde, porque um
homem pode tentar esconder sua idade mas não seus castigos emocionais
temporários.
- Você
precisa comer alguma coisa! Como é que vai ficar deste jeito aluado?
- Mirlla,
eu não quero nada que seja sólido. O que eu quero é apenas ter um sol dentro do
peito para chamar de meu!
Não é que
minha ida ao banheiro fosse complexa quanto o hábito imundo de classificar as
coisas, mas estava menos denso do que a água em sua forma líquida caindo da
torneira, e minha cabeça rodava entre uma lajota sim e outra lajota não, com as
cores ordenadas entre azul e amarelo. Passei creme dental na minha boca, esperando
ter um sorriso mais branco. A passagem dos segundos era fina como o vapor. Para
quê um pijama listrado escuro? A minha densidade estava vaporizada. Baixei a
tampa do vaso e dei a descarga, levando um punhado de xixi transparente, estava
bem de saúde segundo critérios médicos.
- Ele vem?
– eu perguntei, pisando novamente nas tábuas, levantando poeira das frestas que
eu nunca limpava.
- Sim,
logo deve estar chegando. Não coloque uma visão sobre toda esta coisa! Ele
nunca irá te amar, já deixou bem claro. Não é apenas de um, é de todos!
- Bem
claro quando?
- Quando
foi e não voltou – falou Mirlla, virando as costas para minha existência
tardia.
- E se eu
quiser ser todos?
- Mesmo
assim ele não irá lhe querer, vê se entende – saiu do quarto, me deixando no claro
querendo voltar e fechar as cortinas. Se ele vem então ele voltou, acabei
pensando. Mas, o sol ia morrendo um pouco todos os dias.
Se ele
vinha eu deveria estar em ordem, pois colocaria tudo na sequência que sempre
planejei. Não me atrevi a esquecer de passar o lápis escuro sobre meus olhos, e
nem deixei de rebocar minha ressaca de insônia molhada, com uma base neutra
sobre o rosto. Usava a bege, número dois.
Lá fora
era o lugar do meu espetáculo. Quando eu abria a porta dos fundos e dava de
cara para minha horta de legumes frescos, pressentia sobre meu corpo um calafrio
que vinha de terras desconhecidas. Estendia sobre a grama o meu papel físico,
tentando clarear minha pele com o sol que era barrado por um milhão e meio de
folhas da minha árvore preferida (aquela fabricada com flores como efeito de
decoração).
Na rajada
de vento que vinha do vizinho, sentia seu cheiro pelas redondezas. Era aquele
perfume enjoado, de mau gosto, que tanto amei nas minhas páginas de um outro
capítulo. Estavam preocupados com minha recente necessidade de tentar tomar
comprimidos a mais para dormir. Era por isso que ele vinha até mim?
- Cadê o
seu sol? – pedi para meu canteiro de flores, como se pedisse para uma versão
mais fixa, esverdeada e cheirosa de Vicente.
Como um canteiro,
nada me respondeu e acabei falecendo sobre um mar de objetos delineados, como
numa animação que sempre assistia na televisão da minha infância.
- Ele
chegou. Posso pedir que ele venha aqui ou o encontrará na sala? – Não havia
reparado na súbita presença de Mirlla, que me observava da janela da cozinha
com todos os seus silêncios comedidos.
- Quero ir
para o sol. Aqui atrás não me escondo de Deus. Aqui fora ele não me engana com
nada – disse para Mirlla, que se tornava cada vez mais um borrão escuro e menos
um personagem.
Não
bastava o vapor dos segundos, eu via subir um vapor quente do chão. A terra
toda era feita de segundos perdidos para o espaço atemporal. Meus olhos não
sabiam porque as rosas do meu jardim tinham tantos espinhos. Sabe-se lá porque
queria Vicente tão perto. Eu poderia me sujeitar a ser todo mundo, estava
aprendendo a me transformar na não matéria. Caminhei até a beira da piscina e o
esperei, com minha cabeça ardida pelo calor que vem do céu.
- Você
está bem? Não diga que tentou se matar por minha causa?
- Não se
dê tanta importância e mérito – nunca mais olharia para os olhos dele.
- Está
indo as suas consultas? – ele perguntava e eu apenas sentia a sensação de estar
com um sol despedaçado – E como foi? – Continuava me questionando, esperando
que confirmasse o que todo mundo já esperava saber. Eu acenei positivamente a
cabeça, porque sempre soube que o silêncio machucava muito mais do que um
coração partido. E deitei com as costas para baixo, escondendo meu rosto cheio
de marcas, para não vomitar sobre o que ele representava quanto homem. Eu
deveria responder, por ter empatia, então disse:
- O que te
importa? Para alguém que não quer saber de mim, que diz que não me ama, você
quer saber muito sobre minha vida... Vive tentando mostrar e justificar o
injustificável...
Ele virou
a cara, disse que eu vociferava palavras e agressões, e tentava argumentar de
uma forma precária. Assim foi embora me deixando com um punhado de flores
amargas, que precisavam ser cortadas até pela raiz. Aquela piscina estava funda
o suficiente para mim mergulhar sem volta?
A presença
de Mirlla era incômoda. Já havia a destruído de inúmeras formas. Era como se
ela não pudesse ir e ficasse cada vez mais sobre meus pés, com aquela roupa
florida ridícula, fazendo um papel de guarda-costas do diabo. Gritava
frequentemente um “vai para o inferno”, sabendo que era eu que gostaria de
estar por lá. Ela veio depois de horas com seus sucos coloridos e um punhado
daqueles remédios que me obrigavam a tomar por ser um ser humano suicida. Eu
ainda podia me cortar com minhas próprias unhas se quisesse, mas ela ficava lá
parada com seus andares de altura.
- Você não
pode simplesmente estacionar o seu carro em uma vaga para pessoas com complexo
de Peter Pan – odiava o senso de ironia elaborado daquela bruxa. Parei e
respirei, e educadamente sorrindo disse:
- Foda-se!
Ela me
olhou assustada, virando para o meu lado de cara fechada. Como quem conspira
contra meus poucos minutos de felicidade, tive que ouvir um:
- Deveria
ter dito isso para o Vicente, não para qualquer um que queira apenas lhe ajudar
– seus olhos enchiam constantemente de chuvas.
Respirei
novamente e respondi sem cogitar:
- Desce do
carro! Me deixa capotar no meu próprio universo – Ela não mexeu nenhum músculo,
me deixando cada vez mais irritado com o sol naquela tarde estúpida de um
domingo de lugar nenhum.
- Para com
isto! Só você que não percebeu que não tem fundamento? Só você não percebeu que
isso é chato, injustificável, que essa vingança não leva você a nada? O que
você ganha, me diga? Vai, não fica parado aí com esta cara de trouxa, abra a
boca e me fale... Você acha que isso tudo ainda tem sentido?
Não
conseguia olhar para Mirlla. Ficava de cabeça baixa vendo o mundo que construí
desabar. Não tinha o que discutir, aquilo tudo não era eu, mas meu ego que
falava alto. Machucar alguém estava me machucando, e doía tanto saber que
aquilo não era eu. Eu queria que doesse nele, queria que ele sentisse tudo na
pele. Mas e se fosse na minha pele? E se doesse dentro de mim? O que estava
fazendo? Eu não conseguia ser aquilo tudo que eu não era. Não tinha nada de
especial em mim, quem não teria vergonha do que eu representava?
- Eu não
teria vergonha – disse para mim mesmo, deixando Mirlla sem entender.
Acabei
sorrindo, um daqueles sorrisos que a gente dá quando não tem mais nada a
perder, quando até os dentes estão molhados com água salgada que sai da alma e
brota dos olhos, criando rios de sentimentos líquidos. Eu tinha o sol, e talvez
o sol que vinha de mim poderia quebrar um ciclo. Me recuperei e dei as costas,
deixando Mirlla para trás falando sozinha. Vicente? Colori na lembrança, ele
não precisava de mim como eu não precisava dele, não éramos da mesma cadeia
alimentar. Sim, olhando para o mundo eu percebi: não precisava ferir se estava
ferido, não precisava fazer sangrar quem gostava de me ver sangrando. Este foi
o dia que eu, poeticamente sumi. E sumindo eu fui capaz de entender que o sol
não vai embora, tantos séculos que ele brilha sem nenhum motivo. O sol não vai
embora porque não tem para onde ir. Não existe dentro ou fora. Existe uma coisa
só, e essa coisa não sou eu, o "eu poético". Então sai do eu e vai
para o mundo. Eu sei que doeu, mas sai do eu.
Indo pela
porta da frente calmamente, eu vi a rua e me virei para o sol, passei as mãos
sobre meus cabelos e pensei: sim, eu sou foda para caralho! E ponto. Daquele
dia em diante não aceitava mais ser estuprado por palavras, sentimentos e
ações. Eu era mais do que um corpo disposto ao sol. Sol demais machucava os
olhos e não fazia bem para a minha saúde. Eu não era mais gasoso, estava sólido
novamente.
By: Vinicius Osterer, Fevereiro de 2018 - Livro: Estupro Coletivo