terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Livro: "Predador Sexual" - Parte 01



Poderia Ser Você?

A vida tem disso às vezes. Pensei, pensei... E bem, não vou começar falando sobre o fato de ir pegar uma manta para aquecer minhas pernas, está tão frio neste domingo de Agosto, como nunca esteve há muito tempo. Nem começar dizendo que sentei novamente com minha xícara de café na sacada, lembrando do fato de que tem tanta coisa acontecendo dentro de cada cômodo desta cidade.
Poderia lamentar por me sentir isolada dentro da minha própria vida, presa dentro destas palavras degeneradas que me explodem na cabeça, fazendo com que eu bata forte na máquina de escrever e coloque em um papel ou um “porta-palavras”, aquilo tudo que nunca ousei relatar de outra forma. Mas a vida tem disso... Não é assim que quero começar...
Ótimo, eu sei sobre o que não quero falar... Sei também que sou velha e cheia de tantos valores: os morais, espirituais e políticos. Não sou uma mulher santa, dessas beatas que procuram salvação no fim de seus dias terrenos! Não sou uma mulher idealista, destas que lutam por suas causas pessoais ou pelas minorias! Nem mesmo uma mulher estúpida o suficiente para se submeter e se deixar sustentar por outro homem, nesta altura da vida! Sou alguém que faz fofoca! Mas...
Não é sobre mim que quero escrever. Escrever sobre o quê então? Escrever sobre a vida? Sobre amor, talvez. Sobre tudo aquilo que eu conseguir deixar escrito neste livramento. Porque escrever é se livrar das coisas, não é? Queria escrever sobre as inúmeras vezes que cuidei do que nunca foi meu, das palavras que nunca foram minhas. Das tantas coisas que observava deste mesmo lugar que estou agora, com minha máquina de escrever, me sentindo uma escritora realizada. E a gente se ilude com tão pouco, não é?
Escrever sobre alguém que eu nunca cheguei a ser. Sobre alguém que já fui há muito tempo. Sobre todos os meus sentimentos que guardava dentro da vida, sem nenhuma notoriedade. Sobre outras pessoas. Talvez uma mulher destemida e receptiva, um homem moderno e amoroso, o final em aberto de um gosto estupidamente ignorado. O amor só está deste lado? Queria transparecer além destas palavras, pairar sobre a atmosfera da não matéria (obs.: gostei disso, mas não importa, não escrevo para mim, ou escrevo?).
Depois vou pentear os cabelos, colocar meu vestido dos domingos, deixar esta máquina de escrever de lado. Tomar meu vinho e aprender a cuidar mais da minha vida, porque ainda estou viva. Ainda não sou apenas meu próprio relato da brevidade.
E hoje escureceu mais cedo. Não fiquei esperando ouvir alguma coisa no corredor ou na parede de divisa do meu apartamento. Estou me observando neste exato momento, e estou vivendo uma grande plenitude tardia. Por que nunca me amei antes? A vida tem disso às vezes. A vida tem disso... Bem, acho que esse já foi um começo...
Poderia ser você, poderia ser eu, poderia ser tanta gente. Mas, esta estória é limitada a realidade de todos que se identificarem com o enredo. É um relato de alguém que não tinha nada para fazer da vida, uma alguém que também poderia ser você. Vamos inverter os papéis?
Pois bem, eu começo. Prontos para um romance? Coloco os meus óculos de leitura, me conecto com minha máquina de escrever, e faço o que sei fazer de melhor: falar sobre outras pessoas.



Capítulo I – As Outras Pessoas

Quando foi que me interessei por eles? Deixe-me ver... Tento puxar de dentro da minha memória, mas não consigo lembrar exatamente do fato. Quando digo eles, estou precipitando minha estória, pois apenas dois eram os meus vizinhos: Valkíria e Júnior. Seus pais chegaram ao condomínio recém casados. Ele um advogado renomado e ela uma dona de casa delicada. Logo me afeiçoei pela família toda.
Valkíria, com seus cabelos de fogo, sempre deu mais trabalho, brigando com as meninas do prédio, correndo e tocando as campainhas de todos os andares, e frequentemente, descendo e subindo vasos de plantas, sacos de lixos e o que achava pelo caminho, dentro dos elevadores sociais do prédio. Sua mãe sempre cheia de desculpas e vergonhas, repreendia Valkíria, que voltava para casa sobre as ameaças e sermões, com um sorriso de orelha a orelha.
Júnior era o mais quieto, sempre envolvido com seus pensamentos. Não brincava com os meninos do prédio e nunca se envolvia em confusões, mantendo um sorriso brilhoso e uma educação primorosa. Abstraia ideias e inventava brincadeiras novas, para ele mesmo brincar sozinho pelos arredores do prédio.
Naquela época já se falava em todos os corredores sobre a minha má fama de fofoqueira. Então, não estranhava o fato de que as pessoas tivessem pudores e receios de me contar algo mais profundo ou desabafar sobre algum problema de suas vidas. No início deduzi que por este motivo, meus novos vizinhos de andar, eram tão retraídos e fechados.
Mais tarde fui descobrir que aquele comportamento apenas era a ponta de um iceberg, pois todos viviam sobre a pressão de um homem... Ah, sim! Lembrei até do fato! O do por que me interessei tanto... Era domingo e estava assistindo televisão com meu filho Carlinhos, que naquela época deveria ter praticamente a mesma idade de Júnior. Entre um comercial e outro de produtos que prometiam milagres, acabei ouvindo gritos e uma longa discussão que só terminou quando a porta da frente bateu com força. Os barulhos se cessaram em menos de meia hora, mas toda a calmaria nunca mais existiu. Nos anos seguintes, até a morte daquela mulher (mãe de Júnior e Valkíria) que parecia tão saudável, a família retraída convivia com as discussões, insultos e agressões de um homem manipulador e persuasivo.
E por que não fiz nada? Naquele tempo tinha medo do reflexo de minhas atitudes. Era uma viúva, dependente da pensão do governo, com um filho para criar... E se sobrasse para mim tudo aquilo? Esparramava a fofoca pelo prédio, para ver se alguém tomava uma atitude, só que também ninguém fazia nada!
Quando a mãe deles foi enterrada, o pai virou um alcoólatra. Então, acabei vivendo com copos nas portas, orelhas nas paredes, olhos nas sacadas e minha língua afiada e pronta para comentar sobre tudo o que eu via e ouvia dentro e fora do apartamento. Temia a presença daquele homem, com eles sozinhos e tão novos, despreparados para as coisas que ouviam.
Logo, estava falando sobre todo mundo, não poupava andares e nem pessoas. Inventava coisas que pareciam verdades e tinha o prazer de esparramar tudo que eu sabia. E aqui estou eu! Mas não é sobre mim...
É sobre eles crescidos, deste momento em diante. Entrando naqueles mundos, não existindo frequentemente. E por eu não existir é que eles surgem com força total, espiralados dentro da minha memória, que não é mais minha a partir de agora. Vou refrescar os fatos e tentar ser neutra em opiniões. Qual a cor da minha estória? Que palavras vou por neste porta-retratos? Colorido e amor... Eu não existo.

Valkíria
“Na densidade de um sonho onde não se sabe se o dia está ensolarado ou com nuvens. Quando se perde a percepção e não se lembra de nenhuma nova palavra, porque as palavras não podem ser lembradas, nem sentidas e imaginadas. Então surge até seus ouvidos alguém sufocando e gritando:
- Não me deixe morrer!
E todas as cores desaparecem com barulhos de tambores africanos e risadas desesperadamente agudas. Lá estava ela. A minha mãe com flores dentro de um caixão. Então era um sonho, e aquelas mãos pálidas e corpo esquio deveria ser o meu. Como estar e não estar presente ao mesmo tempo?
- A minha mãe morreu! Meu Deus! A minha mãe morreu!
Existia um céu sobre aqueles túmulos do cemitério? E em queda dentro de um abismo sem luz, estava presa dentro de uma sepultura. Era o meu próprio velório. E tentava gritar, um grito seco e sem eco, mas ninguém conseguia me ouvir...”
- Ah! – respirou observando a hora no despertador digital, do lado da sua cama. Mais um pesadelo que a acordava pelas 4:00 horas da manhã. Depois que sua mãe morreu ela não conseguia mais dormir em paz sem um desses pesadelos.
Como perdia o sono com frequência, passou a criar seu próprio roteiro da insônia: arrumar o quarto, tomar banho, trocar de roupa, alisar os cabelos, conferir a lição que seu irmão deixava na mesa, passar as roupas que se acumulavam há algum tempo. Naquele dia as horas não corriam e o que lhe restava como opção seria fumar um cigarro na sacada.
Já eram quase 7 da manhã e as pessoas saíam para o serviço, tudo ocorrendo como o normal, dentro de uma ordem que não parecia correta. Então voltou para o quarto e vestiu o pijama novamente, desacorçoada com a vida e com mais um dia para ser vivido. Tirou um breve cochilo, até que...
- Valkíria... Acorda! Você hoje tem academia! Valkíria... – era Júnior.
- Eu já vou...
- Vai se atrasar...
- Me dá mais uns 10 minutos...
- Eu sei que você levantou bem cedo, vamos Valkíria. Vi a minha lição corrigida de novo. Vamos tomar café porque o papai quer ir trabalhar...
- Já vou, já vou, que saco...
Levantou e colocou a roupa da academia dirigindo-se para a cozinha com passos pesados e lentos. O espelho do corredor a enfretava com bravura, mostrando sua fraqueza estampada no rosto amassado pelo travesseiro e nas olheiras do poder de uma noite mal dormida.
“O que é isto Valkíria? Coloque um sorriso nesta sua cara de merda. Se você não está bem, o problema é seu e não do mundo” Ela pensou.
- E aí Valkíria, acordou com fome? – Júnior percebeu que sua irmã encarava gravemente o espelho.
- Eu tenho que comer, eu não tenho? – abandonou a imagem falsa e invertida.
- Eu sou mais novo Valkíria, e quem faz greve adolescente de fome nesta casa é você! E que humor horrendo. Está de TPM? Estúpida...
- Alguém nesta casa tem que enxergar que ainda tem filhos neste mundo! – falou em um tom mais alto.
- Nem precisa fazer cena! Eu acabei de tentar chamar ele e vi que ele não está em casa. Dormiu fora novamente.
- Que bom. Muito bom tudo isso – tentava procurar as chaves do carro reserva, que estavam na cesta de madeira posta na pia da cozinha – Ao menos ele deixou o outro carro. É. Vai ter que ser eu hoje para te levar para a aula pirralho...
- Pirralho não! Eu já tenho 17 anos, você que é uma idosa...
- Haha! Bom, então hoje como eu não preciso fazer a minha greve de fome e a minha encenação, me passa dois pães e a manteiga...
- Cuidado... Já está maior do que o King Kong! Depois não consegue mais caminhar, sobe no prédio mais alto batendo no peito, e aí?
- Cala a boca! Só você para me fazer rir logo cedo depois desta noite espetacular!...
- Nossa! Quanto sarcasmo, oh Godzilla adestrada...
- Pelo menos não fui achada no lixo!
- Gracinha você... Teve outro daqueles pesadelos?
- Sim. Estão cada vez piores.
- É. Apesar das brincadeiras, isso é muito complicado. Eu também sinto muito a falta da mamãe aqui em casa.
E naquele silêncio necessário para se velar os mortos, ambos pararam para refletir sobre suas vidas. O apartamento começava a se encher de luz e alguns ruídos, vindos de fora pela porta da sacada aberta. Era um grande contraste entre os rangidos de dentes e um relógio “tic-taqueando” na cozinha. A voz de Valkíria incidiu sobre Júnior e a mesa:
- Bom, vamos nos apressar... Hoje você vai chegar para a segunda aula.
- Eu sei. Mas eu odeio mesmo Educação Física. Então eu realmente não me importo.
- Pois deveria ganhar uns músculos, seu magricela! Como é que vai arrumar um namorado?
Se eu estivesse olhando para o seu rosto neste exato momento, caro leitor! Uma senhora colocando um gay na estória? Vou ser fiel aos fatos... Este ser humano então respondeu:
- Eu não preciso disto! Eu tenho o meu charme próprio de capa!
- Bom, se você diz! – Valkíria respondeu com um sorriso transparente nos lábios.
- Haha! Estranha! Surrealista!
- Haha digo eu... O seu bom humor sempre aumenta a minha vontade de viver por mais um dia. Eu te amo!...
- Eu também te amo Valkíria!
- Me chama de irmã porra...
- Não. Não sou seu irmão. Não puxei os seus genes gordos, então eu não sou seu irmão. Sou magricela!
- Ofendidinho! Vamos então para o colégio Valmor Júnior?
- Credo! Além de falar com a boca cheia de pão, a morta de fome ainda tem que falar este palavrão... Por que meu Jesus? Por que usaram toda a inspiração para o seu nome, e me deixaram com um Valmor? E Júnior? É muita humilhação para uma pessoa só. Daí a criança cresce traumatizada e aí... E aí?
- Hahahaha.... Eu quase infartei agora...
- Vamos logo, antes que você convulsione no chão da cozinha e aí tenha que ajudar. Odeio caridade. Aí eu chego apenas para o intervalo... E você perde a incrível maratona de equipamentos de ginástica para emagrecer, sua orca... Como vai ficar a sua turnê no SeaWorld?
- Vamos... Pega ali a chave faz favor Valmor... Eu não estou gorda...
- Aí! Credo! Para com isto. Vou chamar um padre exorcista para você, ver se você desencana dessas palavras que parecem ser ditas em uma língua morta, tipo latim... Deveria fazer direito, ser advogada...
- Hahahaha...
A criança que atormentava os vizinhos com seus cabelos de fogo, havia crescido e se tornado uma mulher alta, sinuosa e com um olhar abissal. Na recepção, como de costume, cumprimentou o porteiro:
- Bom Dia senhor José... Alguma coisa?
- Chegaram umas correspondências para o seu pai.
- Bom, ele não é aleijado! Que pegue sozinho... Até mais!
- Até mais Valkíria! Tchau Júnior...
- Tchau seu José... Viu sua agressiva, alguém sabe ter respeito para com o outro ser humano...
- Vai Valmorzinho...
- Vou até colocar meus fones e esquecer que você existe...
Valkíria liga o som do carro e acaba sofrendo igualitariamente com os outros milhares de motoristas que se aventuram ao extraordinário milagre da locomoção matinal. Prefiro encurtar a estória, pois isso é um romance, e não preciso falar sobre o congestionamento, os sinais de trânsito, as pessoas violentas, a intolerância dos motoristas, e outros tantos blábláblás e besteiras associadas ao tema. Até porque eu sou uma das milhares de pessoas, e mesmo não tendo renovado minha carteira, eu não tenho nenhuma paciência para descrever todo o trajeto do condomínio á academia.
- Não se esqueça que você tem que me buscar! Depois daqui, vou com uns amigos almoçar, e para o inglês. Aí me encontre lá, no meio da tarde... – disse Júnior abrindo a porta do carro.
- Sim. Eu vou ficar hoje até de meio dia na academia, e aí de tarde eu passo lá. Qualquer coisa me ligue...
- Se você atender... Por que vamos falar sério. Pra o que é que você tem um celular, eihm Valkíria?
- Para não ser a única pessoa da face da Terra que é incomunicável! Até mais Valmor – ela sarcasticamente manda um beijo.
- Ai não! Por hoje minha cota de você acabou... Beijos queridinha! – Ele bate a porta do carro e entra no colégio.
- Hahahahahhaa...
Óculos escuros, vidro fechado, ar condicionado ligado e...
- Ahhhhhhhhhhhh… Onde vou estacionar? Ai que merda.. Que fique aqui mesmo, neste lugar já está mais do que perfeito... Foco, fé e força Valkíria! Meu Deus o que este cara está fazendo aí parado... Vou estacionar... Ei, olhe por onde anda, depois nós mulheres não sabemos dirigir, por favor!
- O que foi? Me deixa entrar para trabalhar!
“Nossa, que sujeito estúpido... Vai então...” Ela pensou.
- Tudo bem, seu grosseiro.
“Nem me ouviu. Deveria estar atrasado ou é mal educado. Controle-se Valkíria. Libere o seu cisne negro hoje na academia. Mate alguém. Empurre alguém na esteira. Quem sabe, coloque hipercalórico no suco de proteínas do sol do Tibete, China, Coreia do Norte, ou qualquer diabo a quatro daquela maldita musa fitness da academia, para ver se vira uma mulher de verdade e não um corpo esculpido com uma cabeça de vento”.
Então ela entrou e foi para o vestiário deixar as suas coisas para depois malhar.

Júnior
- Não se esqueça que você tem que me buscar! Depois daqui, vou com uns amigos almoçar, e para o inglês. Aí me encontre lá, no meio da tarde... – Júnior estava distraído, abriu a porta do carro sem olhar para os lados.
- Sim. Eu vou ficar hoje até de meio dia na academia, e aí de tarde eu passo lá. Qualquer coisa me ligue...
- Se você atender... Por que vamos falar sério. Pra o que é que você tem um celular, eihm Valkíria?
- Para não ser a única pessoa da face da Terra que é incomunicável! Até mais Valmor – Valkíria manda um beijo sarcástico, ele vira a cara dando um de seus poucos sorrisos.
- Ai não! Por hoje minha cota de você acabou... Beijos queridinha!
Como sabia do que aconteceria, fechou seu sorriso e entrou sem o porteiro perceber para dentro do colégio. Direcionou-se até um banco perto de uma árvore florida e esperou o sinal para a segunda aula. Se não tivesse ambição por um futuro longe de tudo aquilo...
- Afeminado!
Impulsionado pela palavra proferida, dirigiu-se para um canto do colégio com seus fones de ouvido e sua cabeça abaixada. Tratava de se colocar no seu devido lugar, solitário pelos cantos, escondendo sua imagem dos outros garotos normais. Já estava acostumado a andar com passos baixos na escuridão, precisava cumprir o ciclo do preto e branco para enxergar com o colorido da glória.
- Em algum lugar além do arco-íris... – ouviu o sinal e deixou que o cinismo o invadisse por covardia, derrubando o corpo no chão, regando a terra com lágrimas e desgostos – eu preciso ser forte! Eu preciso ser forte! Me ajuda senhor, eu não aguento mais isso...

Valentim
Roupas curtas e suor. É a hora da malhação e da dor. Tanta dor de ego e tanta dor muscular, tanta dor na alma e tanta dor no olhar. Malhação do corpo e malhação de Judas. Malhação da língua e da vontade de viver. Quem nunca, mas nunca... Que atire a primeira pedra, já disse Cristo.
Valentim eu apenas acho que nunca. Sim Valentim, sim Valentim. Será?
Valentim abre seus olhos, entre tanta publicidade e exageros do rádio, percebendo que está mais atraso do que o normal. Como personal trainer nada é mais recompensador do que nos ajudar, ainda mais nos dias de hoje, em que essa nova geração virou uma grande bola semicircular peluda e interconectada a uma vidinha patética, de aspiração e de ostentação social.
Selfies e mais selfies (é assim mesmo o nome, não é? Daquelas fotos do próprio rosto?) e muita gordura trans e sódio. Mais e mais refrigerantes e doses imensas de doces, de pizzas, de fast-food, de vida americanizada. Sim Valentim, este é o seu mundo e este problema agora é o seu.
- E quem disse que eu não tenho os meus problemas? – indagou o nosso salvador, correndo para o banheiro para uma chuveirada rápida.
Também convenhamos, após os drinques da noite passada, de tantos rostos desfigurados e de tantas carteiras de cigarro barato, estava mais do que na hora do exemplo de salvação do mundo acordar. Se ele era o salvador da humanidade, pouco ou nada lhe importava, era um homem decepcionado, mas que mesmo assim ainda vivia.
“Hoje quem sabe eu morra. Mas, morrendo ou não, eu tenho que ir trabalhar, porque não posso me atrasar, tenho uma vida digna agora. Esta cama está tão boa, bem que poderia ter nascido rico, ter tido algum talento ou ser algum artista, qualquer coisa mais do que isto. Mais do que isto.” Ele pensou.
- Um bom dia para mim, para mim ou para eu? Sabe que nunca me informaram qual é a diferença, se ela existir...! Nossa que porra para se falar, hora de ir para o trabalho...
Enquanto toma o seu banho suas mãos deslizam pelo corpo, relembrando aquele toque já perdido, e aquelas velhas decepções já vividas. Os rostos que já lhe ajudaram a se sentir sexualmente prazeroso. E Valentim presenteia a si mesmo com uma masturbação meio conturbada pela espuma do sabonete, como muitos jovens e velhos de nossa época. Assim começa mais um dia e termina outro. Um banho. Um bom banho. Escovar os dentes no chuveiro, passar spray no cabelo e arrumar da maneira e do jeito que ele gosta. Por quê? Um homem não pode? Mas quem foi que falou isso? O governo? Não vi nada nos jornais!
Uniforme limpo pela lavanderia do prédio, barba feita – não achava higiênica a barba comprida por se fazer, e que agora virou moda. Mochila, água, fruta e seu suplemento. Este é o dia. E deixem que falem as más línguas, e como elas falam:
-Bom dia Valentim.
-Bom dia senhor José. Tem alguma correspondência para mim?
“Ou para eu... não sei quando é eu ou mim, ou se existe mim.”
- Não, hoje nada.
- Bom, então se chegar alguém avise que estou na academia, e se chegar alguma coisa no meu nome pode assinar por mim, estou esperando uma encomenda...
- Ok, pode deixar.
E lá se vai Valentim. O mundo lá de fora lhe espera com suas acusações, enquanto o mundo ali de dentro lhe difama com seus preconceitos.
- Viu Dona Lúcia, nem olhou para a senhora. Depois que a senhora espalhou pelo prédio que ele era gay, nem lhe cumprimentar lhe cumprimenta.
- E eu menti senhor José? Não. Eu vi com os meus olhos a pouca sem-vergonhice que ele estava fazendo no apartamento dele com o amigo dele.
- Mas e como a senhora viu? A senhora mora dois andares acima e ele tava dentro do apartamento dele como a senhora agora falou.
- Eu vi e pronto, e se não vi eu ouvi. E se ele não fala comigo é porque é um gay consentido. Que desperdício. Um rapaz tão bonito. A mãe dele deve ter vergonha do tipo de filho que criou. Pobre coitada. Imagine se fosse o meu Carlinhos? Ainda bem que meu Carlinhos é diferente. Um garoto de verdade. Um garoto exemplar.
Sim, Dona Lúcia sou eu. Muito prazer!
- Sei Dona Lúcia. Sou apenas o porteiro. Não cuido da vida de ninguém daqui não. E se ele for também problema é dele. O cu é dele, a vida é dele. E antes dele do que no meu.
- Credo, que linguajar mais baixo. Isso não é comportamento de uma pessoa que cuida de um prédio como o nosso, vou reclamar com a sindica. Com licença.
- Isso, vai mesmo linguaruda. Vai achar a vida de alguém para cuidar. Da portaria cuido é eu, meu serviço!
Valentim liga o som de seu carro e sofre igualitariamente com os outros milhares de motoristas que se aventuram ao extraordinário milagre da locomoção matinal. E blábláblá... Não preciso disso novamente, preciso?
E nada de tão interessante poderia acontecer... Apenas o telefone dele poderia tocar, e ele poderia cogitar em não atender, porque saberia quem era a pessoa do outro lado da linha, e saberia absolutamente o que esta pessoa gostaria de falar. Após três chamas perdidas ele poderia atender e ouvir aquilo...
- Valentim, queria tanto poder te ver novamente. Tenho muitas saudades de você. Não consigo mais pensar em nada. Desculpe por não acreditar em você...
- Agora você acha que eu estou certo. Bem agora que já estou seguindo a minha vida? Acho que está tarde para voltar e tentar recuperar aquilo tudo que já foi muito bom para mim.
- Mas Valentim. Eu julguei você com a perspectiva errada...
- Desculpa, eu vou ter que desligar. Estou chegando ao meu trabalho e agora sinceramente não é uma boa hora. Tente viver assim como eu fiz. Como eu fiz quando você... Quando você me fez aquilo tudo, por causa da sua querida amiga de três meses. Aquela que você acreditou que era sua amiga, para falar a verdade. Sabe o que você é...
- Por favor, não fale assim comigo...
- Você é como todos os outros. Não consegue passar um dia da sua vida sem alguém do seu lado... Está na hora de você crescer. Para mim acabou, e agora quem não quer mais nada com você sou eu.
Acorda Valentim, o sinal abriu. E nada de interessante aconteceu. Você parou para pensar no que poderia acontecer e não aconteceu.
Valentim tenta estacionar o carro na frente da academia e luta contra a ideia de ligar para a pessoa dos cabelos compridos e loiros. Mas por hoje o seu dia ainda tem muita malhação. Malhação de corpo e de língua. Malhação de copos e malhação de caras. Um espetáculo perfeito com gritos, com dores e com varas. Sim Valentim. Sim Valentim, o predador amadureceu e mostrou as suas garras. Sim Valentim. Sim Valentim. Eu sei que esta atitude poderia estragar a sua semana.
- O que foi? Me deixa entrar para trabalhar! – Gritou ele para alguém que cortou a sua preferencial para estacionar, e para mim que me intrometi onde não fui chamada.
- Tudo bem, seu grosseiro.

2 comentários:

  1. Aaaaah, não acredito 😍
    Você jura que vai postar mais?

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    1. Todo dia ímpar vou postar um capítulo do livro até o final! :D :D

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